quinta-feira, 6 de abril de 2017

A mulher a caminho




“- Com licença. Há alguém aqui?” Apontou para a poltroninha de veludo vermelho ao lado de outra idêntica, em que sentava uma criança. O menino ergueu a cabeça, virou-se para a poltrona vazia ao seu lado, correu os olhos pela livraria, mirou-a novamente e disse “hm, tem sim. Meu irmão está aí, mas…” e preparou-se para olhar ao redor, quando, subitamente, suspendeu o gesto e deliberou “pode sim, pode se sentar”. Mantendo o semblante sempre muito sério, voltou o olhar para o imenso livro que acomodava no colo, cheio de ilustrações, algo como um atlas ou coisa assim.

Ela se sentou, pendurou a bolsa no braço da pequena poltrona de veludo e abriu o livro que pegara na prateleira. Ela não daria mais de oito anos ao menino, que tinha os cabelos louros, encaracolados, rebeldes e um pouco compridos demais para um garoto de uma cidade do interior como era aquela.
Olhou para o livro. Pausa. Releu a mesma página duas vezes. Tentou começar uma terceira. O que estava acontecendo? O breve diálogo com a criança deixara-a estranhamente inquieta. Por que não conseguia se concentrar? Por que o menino desistiu de procurar o irmão e, disse, tão decidido “pode sim, pode se sentar”? Teria desistido de buscar o consentimento de, quem sabe, um irmão mais velho? Bobagem. Mas não parava de sentir aquela agitação. “Pode sim, pode se sentar”. Foi um convite. Um convite para acompanha-lo. Será? Decidiu, então, retribuir o possível carinho e tentou ler, mais uma vez, disfrutando da companhia do menino.

Em meio à disputa que se travava entre seus pensamentos e aquelas linhas à sua frente, a mulher ia convencendo-se, repassando a cena um milhão de vezes na memória, que, entre algumas poucas palavras e outros gestos mais, ele também reparara nela. Aos poucos, foi se dando conta de que os olhinhos também pareciam brigar entre a atenção à leitura e a curiosidade de garoto sobre o que estaria aquela mulher fazendo ali ao seu lado. Ela foi tomada por completo por aquele delírio, uma espécie de apaixonamento. Estaria apaixonada? Que sentimento era aquele? Talvez fosse apenas carência, devaneios de uma imaginação pouco amadurecida. O que era envelhecer?, ela se perguntava, afinal.

De toda forma, deixou-se levar pelo encanto que causam as pessoas que ainda não se descobriram capazes de seduzir umas às outras, ou quando ainda não sabem quantas muitas outras poderão namorar, admirar, trair, levar ao êxtase ou à loucura. Pensava em como eram lindos os homens nesse estado, em que enxergam a beleza em uma mulher simplesmente por se tratar de uma mulher, o sexo oposto, materno, de seios que são, num só corpo, mar e terra firme. Ali, na presença do menino, sentia-se uma mulher. Tinha os cabelos pintados, vestia uma saia longa de seda, que exalava a fragrância floral do seu perfume preferido. Esguia, serena, devia trazer no olhar a quietude de uma mente que já deu lugar à maioria dos seus fantasmas, mas cuja imaginação ainda causa surpresa e espanto. Era bela, ainda que, por certo, logo descubra o menino os corpos nus estampados nas revistas, anúncios, filmes adultos. Corpos de mulheres esculturais, besuntadas, bronzeadas, cabelos volumosos. Mulher, mesmo que ele venha a descobrir outras, mais corajosas e ousadas, inteligentes. Feminina, embora, em pouco tempo, ele comece a crescer e a sentir, cada vez mais, um desejo de se aproximar de outros garotos, conhecê-los, acariciá-los, beijá-los, e sentir outros testículos roçando-lhe os seus (e que prazer divino deve ser isso, não?).

Mas o que talvez o menino nunca saiba é que todos esses pensamentos cabem em uma mulher, que o tempo todo também se forma, também se toca, também é inevitável a si mesma. Quando se aproxima de um garoto, também sente medo e se aflige. E quando há um encontro como o de agora, ficam arrebatadas a mulher que se sentou e a que está a caminho. Porque tudo isso faz parte dela. Muitas coisas indizíveis habitam seu coração.

domingo, 9 de outubro de 2016

Fossilizado



Pás às mãos
Sai o homem a campo
A cabeça encoberta
Sob o sol escaldante
É manhã em sua vida.

Os passos abrem-lhe as portas
Escava, lapida, implode
Rasga o vale
O cirurgião da paisagem
Machuca a terra
Viva e vermelha que
Feito ferida aberta sangra
E parte, genitália à mostra,
A parir a história do mundo.

Mas não há caminho profundo
Que não deixe também sua marca.

Agora ele é a rocha
Em cuja pele craquelada
Veem-se os sulcos da alma
Dividida:
À frente, o amanhã
Sempre precipício
Às costas,
A matéria antiga
De que é feito
Memória sedimentada
Em um coração
Fossilizado.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Teadorar

(para a amiga Isadora, em comemoração aos seus 30 anos)

Teadorar, Isadora
Das asas de Ísis
No voo fecundo
Da imaginação

Teadorar, Isadora
Na aurora dourada
Amizade-andorinha
Em revoada-verão

Teadorar, Isadora
E contigo ser par
Sem pressa no passo
Me ensina a passar

Teadorar, Isadora
E também te deixar
Sê inteira saudade
Que eu possa levar.


terça-feira, 15 de março de 2016

Instante ao mar

a aspereza da pele
banhada de sol
tem saudades de ir ao mar
juventude, onde as ondas quebram
o coração rebento
da deriva ao delírio
num sempre afogar-se,
renasce.
e o tempo, mar revolto,
traz à praia a ilusão de tê-lo
sob a espuma desfeita,
migalhas e restos de vidas
de onde os pés não alcançam
o chão.



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

caipira

Não é toda vez que isso acontece
Mas é que hoje, sem querer,
Fui fuçar na gaveta e
Achei fotos de criança
Eu, criança
Brincando com as primas
No bosque
A primavera florida no jardim
A janela azul com a cortina de renda
Por onde entrava a luz e
Vi, pela primeira vez,
 O brilho da poeira no ar

Quando isso acontece
Sei que a semana inteira vai ser difícil

Porque tenho medo desta cidade
E lá, de onde venho,
Conheço cada gota de orvalho
E sei exatamente como se comportam os besouros que caem dentro da pia do tanque

Sei o nome dos vizinhos,
A que horas voltam do sítio
E que bebem até altas horas
Espantando os pesadelos

Os pássaros nas antenas
Os gatos nos muros
O cheiro da dama-da-noite e do manjericão

Nada me ama nesta cidade
Mas lá, quando deito no terraço da casa,
É como se até o céu viesse me abraçar
E o tempo passa menos ou igual,
Mas dói só um pouquinho
Quase sem perceber
E digo assim
Perceber
Sem ter que medir ou conter o
Sotaque
Até porque caipira fala pouco
E seu sotaque é antes o olhar acanhado
E medroso
De quem carrega o desamparo
E a certeza de que nada que ele faça
Possa valer mais a pena
Do que ser, pra sempre, e só isso,
caipira.


repartição

entre paredes e pastas beges
a funcionária compulsava os autos
cabisbaixa
então os pulsos - antes dos olhos -
me chamaram
ei você, vê este Band-Aid
no meu dedo
está aqui há anos, muito tempo
e dói e incomoda
virar todas estas páginas
e talvez eu já pudesse tirá-lo
mas se houvesse a certeza
ou encontrasse motivo
para a ferida se fechar

no tempo que passa-e-não-passa
as folhas iam se acumulando
entre os dedos ressecados

porque não aceitava o corte
não se contentava com a cicatriz.

domingo, 20 de dezembro de 2015

dobradura

fez as malas e
dobrou a esquina.
a cidade, ao longe,
ia tomando
o formato do
seu coração.