segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

caipira

Não é toda vez que isso acontece
Mas é que hoje, sem querer,
Fui fuçar na gaveta e
Achei fotos de criança
Eu, criança
Brincando com as primas
No bosque
A primavera florida no jardim
A janela azul com a cortina de renda
Por onde entrava a luz e
Vi, pela primeira vez,
 O brilho da poeira no ar

Quando isso acontece
Sei que a semana inteira vai ser difícil

Porque tenho medo desta cidade
E lá, de onde venho,
Conheço cada gota de orvalho
E sei exatamente como se comportam os besouros que caem dentro da pia do tanque

Sei o nome dos vizinhos,
A que horas voltam do sítio
E que bebem até altas horas
Espantando os pesadelos

Os pássaros nas antenas
Os gatos nos muros
O cheiro da dama-da-noite e do manjericão

Nada me ama nesta cidade
Mas lá, quando deito no terraço da casa,
É como se até o céu viesse me abraçar
E o tempo passa menos ou igual,
Mas dói só um pouquinho
Quase sem perceber
E digo assim
Perceber
Sem ter que medir ou conter o
Sotaque
Até porque caipira fala pouco
E seu sotaque é antes o olhar acanhado
E medroso
De quem carrega o desamparo
E a certeza de que nada que ele faça
Possa valer mais a pena
Do que ser, pra sempre, e só isso,
caipira.


Nenhum comentário:

Postar um comentário