“-
Com licença. Há alguém aqui?” Apontou para a poltroninha de veludo
vermelho ao lado de outra idêntica, em que sentava uma criança. O menino
ergueu a cabeça, virou-se para a poltrona vazia ao seu lado, correu os
olhos pela livraria, mirou-a novamente e disse “hm, tem sim. Meu irmão
está aí, mas…” e preparou-se para olhar ao redor, quando, subitamente,
suspendeu o gesto e deliberou “pode sim, pode se sentar”. Mantendo o
semblante sempre muito sério, voltou o olhar para o imenso livro que
acomodava no colo, cheio de ilustrações, algo como um atlas ou coisa
assim.
Ela
se sentou, pendurou a bolsa no braço da pequena poltrona de veludo e
abriu o livro que pegara na prateleira. Ela não daria mais de oito anos
ao menino, que tinha os cabelos louros, encaracolados, rebeldes e um
pouco compridos demais para um garoto de uma cidade do interior como era
aquela.
Olhou
para o livro. Pausa. Releu a mesma página duas vezes. Tentou começar
uma terceira. O que estava acontecendo? O breve diálogo com a criança
deixara-a estranhamente inquieta. Por que não conseguia se concentrar?
Por que o menino desistiu de procurar o irmão e, disse, tão decidido
“pode sim, pode se sentar”? Teria desistido de buscar o consentimento
de, quem sabe, um irmão mais velho? Bobagem. Mas não parava de sentir
aquela agitação. “Pode sim, pode se sentar”. Foi um convite. Um convite
para acompanha-lo. Será? Decidiu, então, retribuir o possível carinho e
tentou ler, mais uma vez, disfrutando da companhia do menino.
Em
meio à disputa que se travava entre seus pensamentos e aquelas linhas à
sua frente, a mulher ia convencendo-se, repassando a cena um milhão de
vezes na memória, que, entre algumas poucas palavras e outros gestos
mais, ele também reparara nela. Aos poucos, foi se dando conta de que os
olhinhos também pareciam brigar entre a atenção à leitura e a
curiosidade de garoto sobre o que estaria aquela mulher fazendo ali ao
seu lado. Ela foi tomada por completo por aquele delírio, uma espécie de
apaixonamento. Estaria apaixonada? Que sentimento era aquele? Talvez
fosse apenas carência, devaneios de uma imaginação pouco amadurecida. O
que era envelhecer?, ela se perguntava, afinal.
De
toda forma, deixou-se levar pelo encanto que causam as pessoas que
ainda não se descobriram capazes de seduzir umas às outras, ou quando
ainda não sabem quantas muitas outras poderão namorar, admirar, trair,
levar ao êxtase ou à loucura. Pensava em como eram lindos os homens
nesse estado, em que enxergam a beleza em uma mulher simplesmente por se
tratar de uma mulher, o sexo oposto, materno, de seios que são, num só
corpo, mar e terra firme. Ali, na presença do menino, sentia-se uma
mulher. Tinha os cabelos pintados, vestia uma saia longa de seda, que
exalava a fragrância floral do seu perfume preferido. Esguia, serena,
devia trazer no olhar a quietude de uma mente que já deu lugar à maioria
dos seus fantasmas, mas cuja imaginação ainda causa surpresa e espanto.
Era bela, ainda que, por certo, logo descubra o menino os corpos nus
estampados nas revistas, anúncios, filmes adultos. Corpos de mulheres
esculturais, besuntadas, bronzeadas, cabelos volumosos. Mulher, mesmo
que ele venha a descobrir outras, mais corajosas e ousadas,
inteligentes. Feminina, embora, em pouco tempo, ele comece a crescer e a
sentir, cada vez mais, um desejo de se aproximar de outros garotos,
conhecê-los, acariciá-los, beijá-los, e sentir outros testículos
roçando-lhe os seus (e que prazer divino deve ser isso, não?).
Mas
o que talvez o menino nunca saiba é que todos esses pensamentos cabem
em uma mulher, que o tempo todo também se forma, também se toca, também é
inevitável a si mesma. Quando se aproxima de um garoto, também sente
medo e se aflige. E quando há um encontro como o de agora, ficam
arrebatadas a mulher que se sentou e a que está a caminho. Porque tudo
isso faz parte dela. Muitas coisas indizíveis habitam seu coração.